"Capitães da Areia" é de 1937, dois anos depois de Jubiabá.
A história da gangue de meninos que vive num trapiche e pratica pequenos roubos remete naturalmente aos capítulos de "Jubiabá" em que se narra a adolescência solta de Baldo depois de ter fugido da casa do Comendador Pereira.
É um tema que não se esgotou em "Jubiabá" e deve ter parecido ao autor que merecia um romance só para ele. O tema dos jovens delinquentes urbanos é recorrente na literatura, como no Oliver Twist de Dickens. "Capitães" se apresenta como um ao mesmo tempo cru e romantizado dos meninos de rua, vejo nos dois livros as peripécias e o tom melodramático dos filmes de Charlie Chaplin, com o propósito explícito de provocar simpatia e comover.
Eu não havia lido "Capitães". Resolvi ler agora para formar uma opinião a respeito.
Ora, "Capitães", não sei a partir de quando, ultrapassou em muito a fama de "Jubiabá", que foi um best-seller para a época. Fiquei curioso em saber se tinha brilho próprio, se seria um romance "melhor" que "Jubiabá", em algum sentido.
Verifiquei duas coisas: primeiro, é sim, muito parecido; e segundo, apesar disso, consegue ter personalidade própria e os personagens de um livro não se misturam com os do outro, apesar de terem funções e papéis muito semelhantes. Os dois universos têm equivalências, melhor dizendo. Por exemplo,
1) Baldo (Jubiabá) equivale a Pedro Bala (Capitães da Areia).
O primeiro é negro, o segundo é loiro. Mas a personalidade e as habilidades são as mesmas: são valentes, justos, são os líderes das suas gangues.
Baldo é filho de um jagunço de Antonio Conselheiro; Pedro Bala, do estivador Raimundo o Loiro, morto em um comício de greve pela polícia.
Os dois têm cicatriz na face, a de Baldo adquirida já adulto.
Os dois "evoluem" durante a história e passam da vida de malandragem para a revolta operária. Baldo talvez permaneça estivador, enquanto Pedro Bala forma uma tropa de choque para debandar fura-greves e depois se torna o militante "camarada Pedro Bala".
Um "dado cultural" das duas turmas de moleques, que afinal são retratos do mesmo tipo urbano, é o hábito de "derrubar negrinhas no areal" (ou seja, estupravam as moças que tinham a imprudência de cortar caminho pela praia à noite).
2) Gordo (Jubiabá) equivale a Pirulito (Capitães da Areia).
Ambos são carolas, católicos, vivem rezando, o Gordo mais supersticioso com seus santinhos, Pirulito (que é magro) entra para a Igreja.
3) Felipe o Belo (Jubiabá) equivale a Gato (Capitães da Areia).
Gato é um pouco mais velho. Ambos metidos a elegante, gostam de usar anel, Felipe usa uma gravata, Gato acaba malandro e cafetão.
4) o pai de santo Jubiabá (Jubiabá) e a mãe de santo Don'Aninha (Capitães da Areia).
5) capoeirista amigo dos meninos: Zé Camarão (Jubiabá) e Querido de Deus, que também é pescador (Capitães da Areia).
6) menino com deficiência física: Viriato, o Anão (Jubiabá) e Sem-Pernas (Capitães da Areia). Ambos são carrancudos e amargos. Os dois se suicidam.
7) boteco ponto de encontro da galera: Lanterna dos Afogados (Jubiabá) e Porta do Mar(Capitães da Areia).
8) contador de histórias: escritor de ABC ou cordel (Jubiabá) e Professor (Capitães da Areia).
Com a diferença que Professor é um personagem muito mais desenvolvido e faz parte da turma do trapiche. Contudo, em ambos os livros está presente o elemento inteletual, que percebe que aquela vida dos meninos daria um livro. Professor é quem lê as notícias de jornal para a gangue, bola os planos de assalto e também sabe desenhar, e mais tarde vai se tornar um pintor renomado de temática social, e provavelmente filiado ao Partido (no final de Capitães, um estudante que milita diz que o pintor João José é um "companheiro bom".
Existem mais dois elementos de roteiro bastante marcantes, que acredito que desempenham função semelhante no desenvolvimento dos personagens:
9) momento lírico e nostálgico: circo (Jubiabá) e carrossel (Capitães da Areia).
Nos dois livros, o circo e o carrossel são decadentes, o circo quase falindo, o carrossel com a tinta dos cavalos descascando.
São dois momentos que evocam a infância e o sonho.
Em "Capitães", há uma cena muito marcante, que não faz parte do enredo mas é contada pelo narrador, dos cangaceiros de Lampião brincando no carrossel. O que indica que os cangaceiros são puros, ou crianças grandes, ou crianças sem família como os Capitães da Areia, meninos que parecem homens e que também se esbaldam brincando no carrossel a infância que não tiveram.
10) pesadelo ou inferno: fuga de Baldo na capoeira (Jubiabá) e prisão de Pedro Bala na solitária ou cafua (Capitães da Areia).
Etapa de provação do personagem, em que ele se encontra sozinho, no deserto, em dificuldades, padecendo de fome e sede. Nos dois livros, os respectivos heróis ficam vários dias isolados, com seus pesadelos e fantasmas, deliram e saem mais amadurecidos e marcados pela experiência. É uma experiência próxima da morte da qual saem renascidos.
11) o final apoteótico da Greve, a "festa dos pobres" (nos dois livros).
Baldo e Pedro Bala se revelam, encontram seus destinos, na greve portuária.
São atraídos inicialmente pelas mesmas coisas: gostam da briga, da confusão, de enfrentar a polícia.
Depois percebem seu significado mais profundo.
"É uma coisa bonita a greve, a mais bela das aventuras", "A greve é a festa dos pobres" etc. (Capitães).
"A greve o salvou, a greve foi seu ABC" (Jubiabá).
"A revolução chama Pedro Bala" (Capitães).
É notável que a revolução, para Jorge Amado, explicava tudo e preenchia tudo como a religião, só que numa oitava superior, seria uma resposta existencialista mais perfeita.
Em "Jubiabá", a sabedoria do pai de santo é superada pela verdade aprendida por Baldo na greve (!) e Jubiabá "se curva diante de Baldo como diante de Oxalufã, o maior dos orixás" (!!).
E em "Capitães", "A revolução chama Pedro Bala como deus chamava Pirulito nas noites do trapiche".
O que não tem em Jubiabá: um padre liberal como o Padre José Pedro e uma heroína lutadora como Joana, o par romântico de Pedro Bala. A musa em Jubiabá é Lindinalva, que nas palavras de um crítico "passa pelo romance como um fantasma". Este papel de musa intocável inspiradora Joana desempenha em relação ao personagem Professor, de "Capitães", secretamente apaixonado pela namorada do chefe.
Também não há um personagem sertanejo como o soturno Volta-Seca em Jubiabá, garoto que sonha em se juntar ao bando de Lampião. Contudo, a associação dos cangaceiros com os revolucionários está presente nas duas obras. Baldo era filho de um jagunço valente e queria ser um herói de ABC (cordel).
Em "Capitães", a aproximação é maior: "Lampião luta, mata, deflora (!) e furta pela liberdade". Eu, heim...
É preciso dizer que Jorge Amado era um genial batizador de personagens e lugares. Até bares e botecos ganham nomes inesquecíveis. Isto contribui para que os personagens de um e de outro livro tenham, apesar de tantas semelhanças, a sua individualidade bem marcada e inconfundível.
links: Jubiabá / Capitães da Areia (leia o livro! leia o livro!...)
Ou seja, 'Capitães' é uma espécie de Terra 2 de 'Jubiabá' (tá vendo como estou acompanhando The Big Bang Theory direitinho?). Aliás, acredito que se fosse hoje em dia, Jorge Amado desencanava de alterar nomes e detalhes e escreveria 'Capitães' como um spin off de 'Jubiabá', um Smallville das aventuras de Baldo quando jovem.
ResponderExcluirduca! é isso mesmo...
ResponderExcluir"Baldo Begins" :)
abração, sp
Excelente análise. É por coisas como esta que você está na posição que está, fazendo o que faz. Abraço.
ResponderExcluirOlá, Spacca,
ResponderExcluirVocê como sempre, aliando desenho e conteúdo com maestria, se me permite a puxadinha. Li o teu Santos Dumont, que não parava na estante da quadrinhoteca (foi difícil arrumar vaga!). E você ainda cavou informação original! Ficou um show.
Percy Lau é O cara, foi bondade sua. Estou querendo trabalhar uma HQ histórica, sobre um viajante do século XIX. Não sei se será versão ou ficção, talvez um pouco das duas. Ano que vem.
Abração pra ti, estarei acompanhando!
Obrigado, Bá! o trabalho de vocês, assim como cada conquista, é sempre uma inspiração. vamo que vamo.
ResponderExcluirValeu, Bicalho. Vc e o Percy Lau combinam - a começar pela paciência :) Eu li alguns viajantes, cheguei até a estudar o caminho do Porto Estrela no Rio até Diamantina, que foi feito pelo avô do Santos Dumont; a tropa de mulas, com a da frente toda enfeitada... é um tema legal.
abração, sp
Spacca, avisa ao Bicalho que o professor Aldemar Pereira (colega meu e do Martinez na UniverCidade do Rio) fez a curadoria de uma exposição sensacional de originais do Percy Lau em 2006 no Centro Cultural da Justiça Federal. Ele acha o Aldemar pelo http://www.univercidade.edu/iav/professores.htm
ResponderExcluirMeu amigo Spacca, o que é isso???????????
ResponderExcluirJubiabá arrasouuuuuuuuuu!
Adoreiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
Comentar seu trabalho é fazer um varal de adjetivos elogiosos!
A primeira página tá uma loucura, bicho!
O roteiro tá duca!
Sem peso nos diálogos (como eu tinha comentado no D.João Carioca), tudo nos conforme.
O clima tá criado do começo ao fim, pusta pique legal.
Os desenhos maravilhosos!
As cores fantásticas!
Caderno de esboços e detalhes de pesquisa explêndidos.
Que maravilha.
Tecnicamente invejável.
Spacca, vc eleva a HQ à Primeira Arte!
Abração
QUE DESENHO LINDO, MEU AMIGO SPACCA!!!
ResponderExcluirGOSTO MUITO DESTE SEU TRAÇO!
ABRAÇÃO!
Gostei do desenho, do texto, do blog. Tanto que coloquei um link no texto que fiz sobre Capitães da Areia no meu blog (http://leioenleio.blogspot.com)
ResponderExcluirParabéns.
i um link no texto que fiz sobre Capitães da Areia no meu blog (http://leioenleio.blogspot.com)
ResponderExcluirGostei bastante do seu blog e visite sempre que quiser o Leio Enleio. Um abraço
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