sexta-feira, 12 de março de 2010

Glauco - adeus do Spaccolino


Glauco era uma figura.
Trabalhamos lado a lado, desde que entrei para a Folha em 1985.
A partir de 86 comecei a fazer charge política, e alternamos naquele espaço até 92.

Glauco era um dos "filhos do Henfil", jovens cartunistas que durante um tempo cresceram sob as asas do mestre mineiro (os outros eram Nilson e Laerte). Glauco e Nilson moraram na casa do Henfil, inclusive.
Ele conservava a irreverência e a rapidez do traço do Henfil, mas aquilo era dele.
A genialidade era dele. Tinha um humor maroto, meio caipira, que era dele mesmo, e da família dele e da cidade dele, Jandaia do Sul no Paraná. O Pelicano, irmão do Glauco, tem o mesmo talento (o roteiro da HQ do Laerte em que o cara é atropelado usando a calcinha da mulher é do Pelicano). Glauco me dizia que na cidade dele todo mundo era engraçado, o barbeiro, todo mundo. Num lançamento em que vi a família dele, tive essa impressão, eram bem gozadores e moleques, tinha que ficar esperto...

Abaixo, uma charge do Glauco na Folha (06/jan/1986) em que eu desenhei o prefeito Jânio Quadros.



Algumas marcas do Glauco podem ser vistas no desenho acima:
1. o absoluto 2D. Desenho egípcio, chapado, bidimensional. Nestes tempos de louvação do 3D isto merece ser resgatado.

2. a passagem brusca de um quadrinho para o outro. Mudanças rápidas. Grande senso de tempo. Pá-pum. Pano rápido.

3. idéia muito direta, sem frescura.

4. Movimento frenético e congelado ao mesmo tempo; bracinhos e perninhas multiplicados, com o mesmo peso (não é que um é presente e o outro é passado, rastro; os membros se multiplicam mesmo).

5. Uma certa singeleza caipira, maroto e envergonhado, malícia de Jeca.
Ele lembrava de umas coisas constrangedoras e bregas, daquelas que todo mundo sabe mas ninguém fala: complexos, traumas, briga em família, ciúmes, inseguranças. A coletânia de tiras "Abobrinhas da Brasilônia" traz umas coisas assim.

Ele me disse que escolheu o nome "Geraldão" para o seu personagem porque ele era "geral", era todo mundo e era qualquer um. Era um humor muito próximo da gente, que escancarava intimidades. Coisas muito comuns, de classe média pobre, como a tábua de passar roupa e as malas em cima do armário, da mãe do Geraldão.

Nesse próximo desenho, dá pra ver alguns truques que eu pegava do Glauco: a simplicidade, o movimento da faca tríplice - super movimento e ao mesmo tempo uma imagem congelada no tempo, a perna em forma de garrancho já lembra mais o Fradim do Henfil.




Encontrei no meu baú o rascunho abaixo (prontíssimo para receber o nanquim).
Acho que é uma idéia recusada pela Folha.
Sacanagem + singeleza.
Professor de marotagem, de molecagem, de sem-noçãozagem.
Valeu, pangão...

segunda-feira, 8 de março de 2010

A Turma da Mônica X o Direito dos Napões



Os desenhos que ilustram este post foram feitos por mim, por volta dos 11-12 anos de idade.

Eu já sabia que seria desenhista profissional, meu sonho era ter uma família de personagens como os três maiores criadores da minha infância: Disney, Lobato e Maurício.
(Estes 3 nomes são apenas os que mais se destacavam, porque teve literalmente centenas de desenhos animados, gibis e artistas que me marcaram e até hoje me inspiram).

Na semana passada (01/03/2010) um artigo no Observatório da Imprensa, órgão em que publico meus desenhos, fez uma análise-ataque à Turma da Mônica e seus supostos efeitos sobre o comportamento das crianças, incitando-as à violência e ao preconceito.

O artigo de Dioclécio Luz foi um sucesso de público. Até o momento me que escrevo, já chegaram 168 comentários no Observatório, a imensa maioria de fãs indignados, fora os que se manifestam nos blogs que analisam a análise, o Championship Vinyl e o Diogo Salles (só vi esses, deve ter muito mais). No próprio Observatório há uma boa resposta de Emmanuelle Najar.

Estes desenhos já ilustram bem minha preferência, e há pouco o que acrescentar às críticas e respostas ao artigo. A maioria das críticas são, logicamente, desordenadas, cheias de ataques pessoais ao jornalista, do tipo "esse cara não teve infância" etc.
E é assim mesmo que devem ser! Saber analisar é o que se espera de profissionais preparados para escrever, não de leitores. O fã, o leitor "sente" e se manifesta com paixão. E não é um protesto menos legítimo por isso.



Já destrinchar o artigo é muito complicado: a análise de uma análise exige que a gente mostre, a cada linha, onde o autor se perdeu ou afirmou coisas sem base.

E é muito desestimulante hoje em dia, pois periga do autor replicar - e já que na primeira análise ele analisou mal, distorceu e pegou a parte pelo todo, certamente irá fazer isso de novo na tréplica. E vai pegar um pedacinho da análise e contestar, e generalizar...

enfim, sou muito descrente de uma análise verdadeira, com o objetivo de entender e aprender, que não seja feita individualmente ou entre umas poucas pessoas dispostas a conhecer, não a vencer o outro.
Esse tipo de debate com réplicas e tréplicas tem mais a ver com marcar posições e tentar conseguir aprovação do público. Enfim, não é jornalismo, é confronto de sofistas - é política.

Contudo, quero cautelosamente expor minha visão sobre o assunto.

Digo "cautelosamente" porque fácil, fácil isto vira uma grande confusão.
Só para explicar os termos "direita" e "esquerda" como se deve, já seria preciso uma "aula" bem extensa, que a maioria não teria paciência para acompanhar. No dia em que eu fizer um manual de "como fazer charge" haverá uma introdução à política e uma tentativa de desfazer mitos e frases feitas.

Neste momento não dá; só vou falar um pouquinho sobre a Turma da Mônica e o artigo do Dioclécio, tentando mostrar algum aspecto novo, e tentarei ser econômico - na esperança de, quanto menos falar, menos confusão eu cause.




Vamos lá:

1. o artigo de Dioclécio não é uma opinião pessoal.

É importante ter isto em mente.
O jornalista está apenas aplicando conceitos em voga no "superego" da vida intelectual pública.

O politicamente correto não está presente apenas nos setores educacionais: basta assistir ao Fantástico para receber "aulas de cidadania" contra o preconceito, a homofobia, a obesidade, o tabagismo, em prol do consumo consciente e do ecologicamente correto.
Não são apenas idéias que se disseminam naturalmente, ou uma tendência de nossa época: são políticas públicas colocadas em prática. Os comunicadores que desafiam essas normas estão sujeitos a multas e a sair do ar.


Sempre teve uma "casta de sacerdotes" controlando a arte e a informação. Ora religiosa, ora leiga, ora composta de generais e censores, ora de jornalistas e educadores, quando não de artistas engajados.
Antigamente a pressão dos controladores era para defender a pátria, hoje é o planeta.
Por isso a discussão é muuuuito complicada; é um emaranhado de argumentos e justificativas tão instalado na cabeça das pessoas, o politicamente correto já está tão integrado na paisagem que fica invisível.


Dráusio Varela acaba de pedir uma lei que proíba o uso de cor na embalagem de cigarros.
São ações assim, na superfície bem intencionadas e na defesa da saúde e dos direitos, que reforçam o poder governamental de ampliar o controle do comportamento dos governados.

Só daqui a algumas décadas - se esta ideologia for vencida por outra melhor ou pior - ficará mais fácil de perceber o espírito desta época, assim como os paletós laranja e a calça boca-de-sino ficaram ridículos quando passou a moda. Aí o patrulhamento do Politicamente Correto será equiparado à Caça às Bruxas do McCartismo e outras formas de ajustamento social compulsório.
(que, aliás, qualquer sociedade tem, quase todas muito ridículas e injustas).

Voltando: o artigo não é opinião pessoal, não é fruto de uma análise ou tentativa de entendimento.
Ele só aplica à Turma da Mônica um esquema cognitivo automático, um sistema de análise mecânica, que faz parte de uma estrutura de controle social em pleno funcionamento há duas décadas.

Esse estado de coisas e não deu sinal ainda de retroceder - mas nada fica pra sempre.



2. a Turma da Mônica já é mais comportada do que devia.


Inicialmente, e por vocação natural, a Turma da Mônica é entretenimento.
E realiza tudo aquilo que uma boa ficção faz e sempre fez, desde os contos de fadas.
É feita para prender a atenção, para emocionar e, dizem os psicólogos, promovem benefícios psicológicos como a "catarse" (traduzindo: o "lavar a alma" quando o Bem depois de sofrer bastante vence o Mal, por exemplo).


Mas também integra um grande negócio de merchandising, como o universo de George Lucas.
Nesse sentido, a criação não consegue se manter puramente ficção: os personagens se destacam da história e viram símbolos engraçadinhos.

Para poderem ser associados a produtos infantis, os personagens e suas histórias já precisam ceder a pressões do relacionamento do dono da franquia com seus clientes. E assim as histórias já começam a ser vigiadas para que se evite agressões à família, às religiões, menções à política etc.

Eu comparo as histórias que eu mais gostava, do início da Turma (HQs de Horácio na Folhinha e primeiros anos da revista da Mônica) e constato as diferenças. Ficaram mais leves, menos profundas. Talvez mais engraçadas, ou puramente engraçadas. "Maurício" se torna um "selo de qualidade", uma garantia de que os pais estão adquirindo entretenimento saudável para seus filhos.


Agora, do outro lado, vem a pressão da "cidadania". A Turma da Mônica continuou a fazer ajustes, tem personagem cadeirante, deficiente visual, todos os personagens desenvolveram "facetas úteis" para mostrar, publicamente, que podem ajudar a formar adultos responsáveis e conscientes...


Quão longe nós estamos da boa ficção, da arte de criar e contar boas histórias!


As pressões "da direita" (como se mercado fosse a direita, mas vá lá) e as da esquerda exigem que o personagem seja, acima de tudo, modelo de comportamento.
Preocupam-se com a influência da HQ sobre o comportamento da criança - como se ela já não estivesse sob a ação de inúmeros outros modelos de comportamento reais e presentes, os pais, as outras crianças individualmente, o grupo de crianças da escola (como nas prisões, há uma cultura que se herda e perpetua nas escolas, todo um jogo de provas e humilhações que o grupo impõe ao iniciante; acreditar que o "bullying" seja causado pelos gibis é ignorar esta dinâmica social real).


Os autores sabem que assim não se cria boa arte nem boas histórias; os leitores sabem, sentem quando histórias e personagens são falsos quando se transformam em marionetes numa aula de moral e cívica.

===


Bem, está bom já, vou ficar nesses dois tópicos.


Não vejo como enfrentar isso; talvez com um batalhão de psicólogos interpretadores "do bem" que provem que não há ligação direta entre a violência do Tom e Jerry e o massacre de Columbine (roubei a comparação do meu colega Marcelo Martinez).


Enquanto artistas, podemos espernear quando possível, desafiar a censura frontalmente e esperar o castigo, ou fazer protestos simbólicos e disfarçados. Esta saída costuma ser estimulante para os criadores e transforma a arte num enigma para iniciados.

Ou ainda, pisar em ovos e tentar satisfazer gregos, troianos e pandorianos, como Maurício e James Cameron. A ficção sofre, e os ajustes nunca satisfazem completamente os vigias da cidadania.


A grande sátira ao coletivo já foi feita pelo Maurício na história em que Horácio conhece os Napões. Uma história surreal, em que uma comunidade de sáurios, cansados da vida civilizada que levam, tenta transformar o tiranossaurinho vegetariano em carnívoro. Daí acabam brigando pelo direito de ser comido primeiro.

terça-feira, 2 de março de 2010

São Paulo que anoitece flamejante...


Saindo do tema deste blog, mas ainda dentro das reconstruções de época e da vida popular...
Esta ilustração foi feita para a revista Unesp Ciência.
O trabalho começou com este "briefing" do editor Ricardo Miura:

"Olá Spacca, obrigado pelo retorno.
É o seguinte, o que precisamos é montar uma cena numa taberna brasileira do final do século XIX, inicio do XX. Algo semelhante a sua ilustra que segue anexo. Acreditamos que pode ficar muito divertida essa cena. A pesquisadora fez a reconstrução de 72 imóveis situados na rua Esperança, atualmente essa rua não existe, ela ficaria ao lado da catedral da Sé. Pensamos em uma ilustra só para o abre da matéria, o cenário seria um bar, com 4 cenas:
Grupo de estudantes da São Francisco sentados numa mesa bebendo cachaça flamejante em cranios humanos.
Grupo de bêbados – italiano, português e dois negros.
Taberneiro atras do balcão brindando com dois populares, lavadeira e carregador de mala conversando no balcão."

A "minha ilustra que segue em anexo" era uma ilustração que fiz para o programa de TV Debret na Futura, esta aqui:

A pesquisadora é Daisy Camargo, autora da tese de mestrado "Alegrias engarrafadas:
os alcoóis e a embriaguez na cidade de São Paulo no final do século XIX e começo do XX".

Os mapas abaixo mostram como era a praça da Sé nesse tempo e como é hoje.



A catedral não existia, a Sé era uma igreja menor, perto da rua Direita.
Na fotografia abaixo, a rua Esperança aparece ao fundo, seguindo ao lado da igreja
(para quem conhece o centro de São Paulo, é seguindo na direção da João Mendes;
a fotografia foi tirada da esquina da XV de Novembro ou Direita).



Então, imaginei meu ponto de vista na tal rua Esperança, de dentro do bar, olhando a torre da igreja por trás.
Primeiro, fiz este "rough" de como via o desenho na página de abertura do artigo:



O editor gostou e me mandou de volta, com ela aplicada no layout da página:


Fiz então um estudo já mais caprichado, que já dava pra chamar de layout.
O tamanho da ilustração aumentou, o editor conseguiu mais espaço e empurrou o texto uma coluna adiante.
Preenchi então com mais algumas figuras na parte direita.



Layout aprovado, começa a finalização.
Finalizei o desenho em partes, com bico de pena e nanquim, em papel sulfite A3 (40 X 30 cm).



A seguir, a colorização no Photoshop.

Primeiro, criei um layer com o layout e a diagramação, de referência,
com as medidas exatas da página, para consultar de vez em quando.
Na maior parte do tempo ele ficava oculto.
Começo a separar algumas áreas e planos com cor.


Com a cor, me dei conta de que desenhei o boteco sem portas...


Não havia pensado antes, mas na hora de finalizar pensei algo lógico:
Começar pelas luzes do cenário é melhor, porque elas é que vão orientar a luz dos personagens. Lógico.


Sombrinhas, sombrinhas e sombrinhas...


Aqui, desenhei outra cabeça para o portuga.
É que o editor queria um português de bigode, e eu, talvez cansado do clichê, visualizei um lusitano imberbe.
E desenhei meio mal inspirado, e ficou com cara de árabe...
Isso foi me incomodando, então fiz outra tentativa e cheguei nesse seu Manuel aí de baixo.
Manuel chavecando uma Maria.
O que posso fazer, se os clichês do "imaginário", afinal de contas, existiram e andaram entre nós?


Também dei uma mexida nas cores. Tirei bastante amarelo,
e com isso ressaltou o magenta (cor rosa bem forte, usada no sistema gráfico).
Numa avaliação bem subjetiva, perdeu a luz de "filme" e ficou com cara de gravura desbotada,
o que me agradou.



Não ficou uma ilustração realista, mesmo considerando que é um desenho de caricatura.
As figuras estão dispostas e iluminadas para poderem ser vistas e compreendidas
(uma fotografia in loco registraria personagens na penumbra, de costas, fazendo coisas que nem sempre se consegue entender).
É mais uma recriação nostálgica, para passar o clima de boteco e ao mesmo tempo, lembrar certas gravuras antigas e desbotadas.
Foi muito legal ter feito essa ilustração, dá vontade de criar uma história só para usar esse ambiente e os personagens.