terça-feira, 17 de março de 2009

JUBIABÁ X CAPITÃES DA AREIA



"Capitães da Areia" é de 1937, dois anos depois de Jubiabá.

A história da gangue de meninos que vive num trapiche e pratica pequenos roubos remete naturalmente aos capítulos de "Jubiabá" em que se narra a adolescência solta de Baldo depois de ter fugido da casa do Comendador Pereira.

É um tema que não se esgotou em "Jubiabá" e deve ter parecido ao autor que merecia um romance só para ele. O tema dos jovens delinquentes urbanos é recorrente na literatura, como no Oliver Twist de Dickens. "Capitães" se apresenta como um ao mesmo tempo cru e romantizado dos meninos de rua, vejo nos dois livros as peripécias e o tom melodramático dos filmes de Charlie Chaplin, com o propósito explícito de provocar simpatia e comover.

Eu não havia lido "Capitães". Resolvi ler agora para formar uma opinião a respeito.

Ora, "Capitães", não sei a partir de quando, ultrapassou em muito a fama de "Jubiabá", que foi um best-seller para a época. Fiquei curioso em saber se tinha brilho próprio, se seria um romance "melhor" que "Jubiabá", em algum sentido.

Verifiquei duas coisas: primeiro, é sim, muito parecido; e segundo, apesar disso, consegue ter personalidade própria e os personagens de um livro não se misturam com os do outro, apesar de terem funções e papéis muito semelhantes. Os dois universos têm equivalências, melhor dizendo. Por exemplo,

1) Baldo (Jubiabá) equivale a Pedro Bala (Capitães da Areia).
O primeiro é negro, o segundo é loiro. Mas a personalidade e as habilidades são as mesmas: são valentes, justos, são os líderes das suas gangues.
Baldo é filho de um jagunço de Antonio Conselheiro; Pedro Bala, do estivador Raimundo o Loiro, morto em um comício de greve pela polícia.
Os dois têm cicatriz na face, a de Baldo adquirida já adulto.

Os dois "evoluem" durante a história e passam da vida de malandragem para a revolta operária. Baldo talvez permaneça estivador, enquanto Pedro Bala forma uma tropa de choque para debandar fura-greves e depois se torna o militante "camarada Pedro Bala".

Um "dado cultural" das duas turmas de moleques, que afinal são retratos do mesmo tipo urbano, é o hábito de "derrubar negrinhas no areal" (ou seja, estupravam as moças que tinham a imprudência de cortar caminho pela praia à noite).

2) Gordo (Jubiabá) equivale a Pirulito (Capitães da Areia).
Ambos são carolas, católicos, vivem rezando, o Gordo mais supersticioso com seus santinhos, Pirulito (que é magro) entra para a Igreja.

3) Felipe o Belo (Jubiabá) equivale a Gato (Capitães da Areia).
Gato é um pouco mais velho. Ambos metidos a elegante, gostam de usar anel, Felipe usa uma gravata, Gato acaba malandro e cafetão.

4) o pai de santo Jubiabá (Jubiabá) e a mãe de santo Don'Aninha (Capitães da Areia).

5) capoeirista amigo dos meninos: Zé Camarão (Jubiabá) e Querido de Deus, que também é pescador (Capitães da Areia).

6) menino com deficiência física: Viriato, o Anão (Jubiabá) e Sem-Pernas (Capitães da Areia). Ambos são carrancudos e amargos. Os dois se suicidam.

7) boteco ponto de encontro da galera: Lanterna dos Afogados (Jubiabá) e Porta do Mar(Capitães da Areia).

8) contador de histórias: escritor de ABC ou cordel (Jubiabá) e Professor (Capitães da Areia).
Com a diferença que Professor é um personagem muito mais desenvolvido e faz parte da turma do trapiche. Contudo, em ambos os livros está presente o elemento inteletual, que percebe que aquela vida dos meninos daria um livro. Professor é quem lê as notícias de jornal para a gangue, bola os planos de assalto e também sabe desenhar, e mais tarde vai se tornar um pintor renomado de temática social, e provavelmente filiado ao Partido (no final de Capitães, um estudante que milita diz que o pintor João José é um "companheiro bom".

Existem mais dois elementos de roteiro bastante marcantes, que acredito que desempenham função semelhante no desenvolvimento dos personagens:

9) momento lírico e nostálgico: circo (Jubiabá) e carrossel (Capitães da Areia).
Nos dois livros, o circo e o carrossel são decadentes, o circo quase falindo, o carrossel com a tinta dos cavalos descascando.
São dois momentos que evocam a infância e o sonho.
Em "Capitães", há uma cena muito marcante, que não faz parte do enredo mas é contada pelo narrador, dos cangaceiros de Lampião brincando no carrossel. O que indica que os cangaceiros são puros, ou crianças grandes, ou crianças sem família como os Capitães da Areia, meninos que parecem homens e que também se esbaldam brincando no carrossel a infância que não tiveram.

10) pesadelo ou inferno: fuga de Baldo na capoeira (Jubiabá) e prisão de Pedro Bala na solitária ou cafua (Capitães da Areia).
Etapa de provação do personagem, em que ele se encontra sozinho, no deserto, em dificuldades, padecendo de fome e sede. Nos dois livros, os respectivos heróis ficam vários dias isolados, com seus pesadelos e fantasmas, deliram e saem mais amadurecidos e marcados pela experiência. É uma experiência próxima da morte da qual saem renascidos.

11) o final apoteótico da Greve, a "festa dos pobres" (nos dois livros).
Baldo e Pedro Bala se revelam, encontram seus destinos, na greve portuária.
São atraídos inicialmente pelas mesmas coisas: gostam da briga, da confusão, de enfrentar a polícia.
Depois percebem seu significado mais profundo.
"É uma coisa bonita a greve, a mais bela das aventuras", "A greve é a festa dos pobres" etc. (Capitães).
"A greve o salvou, a greve foi seu ABC" (Jubiabá).
"A revolução chama Pedro Bala" (Capitães).

É notável que a revolução, para Jorge Amado, explicava tudo e preenchia tudo como a religião, só que numa oitava superior, seria uma resposta existencialista mais perfeita.
Em "Jubiabá", a sabedoria do pai de santo é superada pela verdade aprendida por Baldo na greve (!) e Jubiabá "se curva diante de Baldo como diante de Oxalufã, o maior dos orixás" (!!).
E em "Capitães", "A revolução chama Pedro Bala como deus chamava Pirulito nas noites do trapiche".

O que não tem em Jubiabá: um padre liberal como o Padre José Pedro e uma heroína lutadora como Joana, o par romântico de Pedro Bala. A musa em Jubiabá é Lindinalva, que nas palavras de um crítico "passa pelo romance como um fantasma". Este papel de musa intocável inspiradora Joana desempenha em relação ao personagem Professor, de "Capitães", secretamente apaixonado pela namorada do chefe.

Também não há um personagem sertanejo como o soturno Volta-Seca em Jubiabá, garoto que sonha em se juntar ao bando de Lampião. Contudo, a associação dos cangaceiros com os revolucionários está presente nas duas obras. Baldo era filho de um jagunço valente e queria ser um herói de ABC (cordel).

Em "Capitães", a aproximação é maior: "Lampião luta, mata, deflora (!) e furta pela liberdade". Eu, heim...

É preciso dizer que Jorge Amado era um genial batizador de personagens e lugares. Até bares e botecos ganham nomes inesquecíveis. Isto contribui para que os personagens de um e de outro livro tenham, apesar de tantas semelhanças, a sua individualidade bem marcada e inconfundível.

links: Jubiabá / Capitães da Areia (leia o livro! leia o livro!...)

sexta-feira, 6 de março de 2009

PERSONAGEM # 14: TOTONHO DA ROSINHA

Saudações! este blog é uma introdução ao Maravilhoso Mundo Jorgeamadiano dos Mistérios da Bahia de Todos os Santos e do Pai de Santo Jubiabá, por meio de seus personagens. Vou publicar semanalmente, ou mais amiúde até, FICHAS DOS PERSONAGENS principais dessa saga. Até o Urso vai entrar. Mas tem muito personagem antes dele pra mostrar...

Décima quarta ficha: (clique na imagem para ampliar)


NOME: Totonho da Rosinha.
QUEM É? troglodita que enfrenta Baldo na sua breve fase de lutador no Grande Circo Internacional.
TRAÇOS FÍSICOS: Um "camponês gigantesco". "Um gigante, aquele camponês de alpercatas e de bordão" (J.A.).
PERSONALIDADE: Apesar de se considerar vitorioso antes da luta começar, é modesto e desconfiado como os sertanejos.
HABILIDADES: "Na roça ele derribava árvores com poucas machadadas e carregava troncos enormes através de enormes distâncias".
PONTO FRACO: Só tem força bruta, não sabe socar.

Quando Euclides da Cunha escreveu que "o sertanejo é antes de tudo um forte", ele tinha em mente o cabra rijo mas franzino, que tem justamente a resistência dos caprinos - não esse Hércules baiano imaginado por Jorge Amado.
É um páreo duro para Baldo esse adversário que Luigi arranjou.
Baldo é boxeador e capoeirista, mais malandro que Totonho. Se fosse só um duelo de força Totonho ganhava fácil, pois no primeiro instante levou um soco de Baldo no queixo e nem sentiu, e em seguida levantou o negro no alto e jogou no chão com violência.

O crítico Octávio Tarquínio de Souza cismou com o termo "camponês" usado por Jorge Amado:

"quando trata dos nossos trabalhadores rurais, dos homens do interior, dos caipiras, matutos ou roceiros, diz enfaticamente 'camponês'. Ora, 'camponês' no Brasil é uma literatura, má literatura; é tradução, é reflexo de leituras de cartazes de propaganda comunista. Na roça, no interior do Brasil, de norte a sul, ninguém diz 'camponês'. Vá o romancista de Jubiabá chamar 'camponês' aos caboclos ou aos negros de enxada, e verá o ar desconfiado com que acolherão." (Jorge Amado, 30 anos de literatura, Livraria Martins Editora, São Paulo 1961).

É verdade. No Brasil tem matuto, cabra, sertanejo, caipira, caboclo... "Camponês" é cacoete da militância política de Jorge Amado naqueles tempos.

Mas ao desenhar esse "camponês" que deveria ser maior e mais forte do que Baldo (que já é "alto como uma árvore"), sem querer ele foi ficando parecido com um outro personagem camponês, digo, sertanejo. Reparem na queixada do Zé Pequeno da Turma do Xaxado, criação de Antônio Cedraz:

Conheça o livro "JUBIABÁ" original de JA, clicando aqui.